Luis Correia

July 13, 2017
 

KARPA 10 (2017) : TEATRALIDADES, DISIDENCIAS y LIMINALIDADES, II    ~     HOME PAGE     Journal of Theatricalities and Visual Culture   /  Revista de Teatralidades e Cultura Visual  ~  ISSN: 1937-8572   ~  Peer-reviewed Publication Indexed by the MLA International Bibliography & EBSCO  ~  General Editors: Paola Marín & Gastón A. Alzate  ~  GUEST EDITORS:  Eduardo Reinato, Roberto Abdala Jr. e Robson Camargo   ____________________________________

 

“Narração oral: aproximações a uma arte performativa” (PDF)

 

 

Luís Correia Carmelo]

IELT - Instituto de Estudos de Literatura e Tradição 

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa

 

 

 

Luis Correia
 

Luís Correia Carmelo

] Luis Correia Carmelo. Nasceu em Lisboa em 1976, mas foi no Brasil que cresceu até 1991. É licenciado em Estudos Teatrais, Mestre em Estudos Portugueses (Representações da Morte no Conto Tradicional Português, Colibri, 2011) e Doutor em Artes, Cultura e Comunicação, com a tese Narração Oral: uma arte performativa. Colabora com o Instituto de Estudos de Literatura Tradicional da Universidade Nova de Lisboa e o Centro de Investigação em Artes e Comunicação da Universidade do Algarve.

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Resumo: Este artigo procura, em primeiro lugar, contextualizar as práticas de “contos” e de “contos” “contadores de histórias” no seio das artes performativas, questionando os seus desafios epistemológicos, o que exige, antes de mais, a superação da evidente dificuldade de estabelecer os seus argumentos ontológicos. Centradas numa voz narrativa, as performances destes artistas evidenciam a interpersonalidade do discurso, o aspeto relacional do evento, através de um expressivo nível mentanarrativo e de uma explícita resistência à representação, no sentido de uma preferência pelas estratégias de “contar” em vez de “mostrar”. Com efeito, são propostas poéticas que procuram a proximidade com a assistência na distância em relação à história, a experiência do agora e do aqui da performance através da evocação de um passado e de um longínquo, a visualização interna no lugar da atualização performativa... São estas propostas de aproximação entre performer e assistência que este artigo, sobretudo, pretende questionar.

Palavras chave: Oral / Performance / Teatro / Narração oral / Narrador / Contador de histórias.

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Um movimento artístico

Hoje é visível, na programação cultural de bibliotecas, associações, cafés, bares, teatros e centros culturais, nas atividades curriculares e extracurriculares de escolas e infantários, bem como num variado leque de iniciativas, um interesse crescente por espetáculos de “contadores de histórias”. Ainda que na maior parte dos países estejam ausentes das agendas culturais instituídas e dos programas públicos de subvenção, têm vindo efetivamente a ganhar alguma visibilidade nas últimas décadas, configurando um fenómeno cultural que ultrapassa fronteiras e continentes.

Nestes espetáculos, de um modo geral, e apesar de muitas variantes, um performer assume a responsabilidade de narrar histórias, que podem ser de géneros e fontes diversas, apresentando-se enquanto ele próprio ou, em raros casos, servindo-se de um alter ego. A imediatez do discurso de um narrador/performer dirigido a uma assistência presente e reativa propõe um evento que naturalmente se aproxima da situação conversacional. Consequentemente, a linguagem utilizada, bem como a expressão corporal, tende a ser de natureza prosaica ou esteticamente cuidada nesse sentido. Do mesmo modo, ao centrar-se na prestação do performer, este tipo de evento pode vir a dispensar elementos cénicos, como cenários, figurinos ou desenhos de luzes, ainda que em diversos casos não o faça completamente. Comuns são os objetos à volta dos quais se organizam narrativas, bem como as formas animadas e, sobretudo, os livros, cujos contextos, a biblioteca e a escola, foram fundamentais para o desenvolvimento destas práticas. Recorrente é também a música, apenas vocal ou acompanhada instrumentalmente, executada pelo próprio narrador ou por outro performer. Dadas estas características, é um modelo de espetáculo extremamente móvel e versátil, o que permite a sua realização em contextos e para públicos diversos.

Esta descrição não abarca, naturalmente, a variedade de formas que este fenómeno apresenta. No entanto, é possível reconhecer um conjunto de tendências que fundam práticas e discursos análogos numa grande variedade de contextos geográficos, o que configura um movimento artístico, ou distintos movimentos artísticos paralelos. Assim testemunham Joseph Sobol (The Storyteller Journey: an American Revival), Calame-Griaule (Le Renoveau du Conte – The Revival of Storytelling), ou Marina Sanfilippo (El Renacimiento de la Narración Oral en Italia y España), entre outros.

Uma das ideias fundadoras destes movimentos, visível nos títulos mencionados, é a de que este fenómeno constitui o “renascimento” de práticas tradicionais, segundo estes discursos, extintas nas sociedades urbanas determinadas por modelos mediados de comunicação e aparente individualismo. Com efeito, independentemente do seu contexto geográfico, estes movimentos artísticos apresentam em comum um carácter expressivamente revivalista, como explora Simon Heywood (Storytelling Revivalism in England and Wales). É nesse sentido que o ato de contar histórias parece vir recuperar um espaço de proximidade, de partilha de experiências e patrimónios, de despojamento tecnológico e imediatez relacional que permite uma comunicação a nível dos afetos, aspeto omnipresente nos discursos de artistas, programadores e públicos. Reconstitui, assim, as realidades familiares ou comunitárias de um passado, por vezes idealizado, em que um avô contava histórias à lareira ou em que companheiros de trabalho se entretinham ao serão com contos e cantigas: enfim, realidades nas quais partilhar uma tradição oral faria parte da vida das comunidades.

Foi assim, numa nova realidade, industrializada, alfabetizada e mediatizada, que a prática de contar histórias oralmente, adequando-se a novos processos, contextos e agentes, desenvolveu-se e tornou-se uma profissão:  

O fenómeno de renascimento do conto oral manifesta-se há vinte anos em países europeus e americanos, apesar da cultura camponesa ao qual estava ligado o conto tradicional, entretanto, ter desaparecido quase totalmente. Esse fenómeno desenvolveu-se e ganhou uma real importância social e cultural. Contar histórias tornou-se um ofício (Calame‑Griaule 11).[1]

 

A demanda ontológica

Em Portugal, o termo que tem sido utilizado para referir a prática de contar histórias no contexto destes movimentos é “narração oral”, provavelmente por influência da vizinha Espanha, onde surge idêntico em castelhano. Em Espanha é também empregue a expressão cuentacuentos, que encontra resistência junto dos profissionais pelo seu uso normalmente associado às atividades de animação para público infantil. Narración oral é também utilizado na América Latina, por vezes na versão alargada narración oral escénica, sintoma da grande influência do narrador e formador cubano Francisco Garzón Céspedes, que terá cunhado o termo segundo Marina Sanfilippo (80-83). Na América Latina surge ainda a denominação cuentería, usada pelo menos na Colômbia, na Costa Rica e no México.

Olhando desde Portugal, é no Brasil que surge uma designação em português que resolve alguns problemas: “contação de histórias” (Prieto, Moraes e Gomes). Assim, aquele que faz “contação de histórias” é naturalmente um “contador de histórias”. Já a terminologia utilizada em Portugal levanta obstáculos: “narrador oral” é um termo de difícil implementação. Em Espanha, por sua vez, e no que diz respeito ao castelhano, a designação narrador oral parece ter-se afirmado de modo mais expressivo, consequência provável do maior número de profissionais e de um maior dinamismo, como testemunha também Sanfilippo (84-87). De qualquer forma, “narração oral” e “narrador oral”, seja em Portugal como em Espanha, são terminologias que estão longe de ser consensuais e circulam apenas nos meios relativamente herméticos de profissionais e entusiastas.

A título de exemplo, em França, o termo mais utilizado para designar a prática é conte, simplesmente (Calame-Griaule, Patrini). A designação não é, novamente, consensual. Paralelamente, surgem expressões como oralité, arts de la parole, ou ainda arts du récit. Mas se as formas de designar a prática podem ser pouco seguras, o termo conteur para referir o artista parece estar convencionado.

Ao contrário do que seria esperado, mesmo os termos em inglês storytelling e storyteller apresentam hesitações. Note-se que a nível da produção teórica surgem acrescidos de adjetivos como revivalistic ou contemporary (Sobol, Heywood, Ryan, Wilson). Esta necessidade de adjetivar, especificando a prática de contar histórias no contexto destes movimentos, se expressa a fragilidade terminológica, manifesta também uma indefinição do próprio objeto, uma dificuldade de encontrar os seus limites, os seus argumentos ontológicos. E as razões dessa dificuldade estão, essencialmente, em dois paradigmas opostos: o conceito de homo narrans e o arquétipo do “contador de histórias”.

O conceito de homo narrans emerge associado a novas perspetivas e abordagens que nas últimas décadas, partindo de uma grande variedade de disciplinas, e em especial no campo das Ciências Humanas, configuraram o que ficou conhecido como a “viragem narrativa” (Bruner, Fisher, Polkinghorne, Raine). Estabelecem que contar histórias é algo intrínseco ao ser humano, não apenas no que diz respeito à comunicação e às interações sociais, mas à própria forma como compreendemos e organizamos a nossa experiência. Essas perspetivas determinam, assim, a ubiquidade do ato de contar histórias e especificam a espécie humana, homo narrans, pela sua capacidade de contar‑se a si mesma e ao mundo:

A arte de contar histórias tem a auréola e o estigma do comum. Todos nós, que falamos uma língua o suficiente para representarmos a nossa experiência, estamos a exercer o nosso direito congénito de contar histórias. As “tecnologias” verbais, musicais, mnemónicas e quinésicas do ato de contar histórias tradicionalmente são extensões de nós próprios, nos termos de Marshall McLuhan – mas são extensões internas, tecnologias nas quais o corpo e a mente são os instrumentos primários (Sobol 1).

Neste sentido, todos somos “contadores de histórias”, o que torna difícil compreender a especialização e, por consequência, a profissionalização de algo tão natural e comum. Boniface Ofogo, narrador camaronês sediado em Espanha, conta na primeira pessoa algo que expressa esta ideia:

[...] na minha aldeia, todas as cerimónias quotidianas se “ritualizam” por meio da palavra oral: as cerimónias de iniciação, as bênçãos, as cerimónias fúnebres, etc. Por isso, a minha família ficou perplexa ao descobrir que contar histórias se tinha tornado o meu modo de vida (Moraes e Gomes 230).

A comparação de Ofogo entre a sua cultura de origem e àquela onde desenvolve a sua atividade profissional está porventura condicionada por expetativas relativas ao “passado” e ao “outro”, à oralidade e à tradição, tão presentes nos discursos revivalistas. Mas se a colação de dois universos tão afastados culturalmente evidencia a nossa questão, é preciso notar que essa distância não é necessária para que o ofício de contar histórias gere perplexidade. Outros narradores, em contexto europeu ou americano, ter‑se‑ão confrontado com a mesma reação ao expressarem o que fazem profissionalmente a interlocutores da sua própria cultura. Simon Heywood, folclorista e contador de histórias britânico, testemunha:

O meu primeiro contacto com a narração oral consciencializou-me da violação de normas pervasivas que eu tinha interiorizado sem nunca ter tido consciência disso, e sobre as quais certamente nunca me tinha questionado até vê-las subvertidas. A combinação de material tradicional, de narração oral parcialmente espontânea e de público adulto criou um efeito surpreendente tão estranho às minhas anteriores expetativas sobre como os adultos poderiam falar uns com os outros que, até a ver acontecer, eu dificilmente poderia ter concebido que valesse a pena, ou sequer que fosse possível […] E é importante notar que esta é uma reação comum. Se eu encontro alguém que não está familiarizado com a narração oral e me refiro a mim próprio ou a um colega como contador de histórias, ou afirmo que estou a fazer uma tese sobre narração oral, sou normalmente confrontado com questões ou com vagas suposições sobre literatura infantojuvenil, poesia, anedotas, e por aí fora, ocasionalmente temperadas com a surpresa de que pode haver um público adulto interessado nisso. Parece ser virtualmente impossível explicar o que é a narração oral a pessoas que nunca a viram, ou imaginar que a narração oral de contos tradicionais para um público adulto seja possível ou pertinente numa Grã-Bretanha moderna (Heywood 114).

Assim, também nas sociedades mediatizadas, adaptadas a uma multiplicidade de linguagens e suportes, o ato de contar histórias oralmente está determinado pelo paradigma do homo narras: é algo congénito, não exige uma “técnica” ou “tecnologia”, como a literatura ou o cinema. Enfim, não pode ser considerado uma arte e um ofício.

O testemunho de Simon Heywood apresenta outra questão pertinente: se no caso dos Camarões de Boniface Ofogo o ato de contar histórias é algo presente na vida da comunidade como um todo, na Grã-Bretanha de Simon Heywood este está relegado a públicos e contextos específicos. Nas sociedades industrializadas, alfabetizadas e mediatizadas, a prática de contar histórias oralmente parece ter sobrevivido unicamente associada a uma faixa etária e a um tipo de corpo narrativo a que a tradição latina, manifestando um expressivo sentido pejorativo, chamou aniles fabulae (Graverini). Segundo Heywood, são essas as referências culturais britânicas: um imaginário romântico em que um ancião entretém os mais novos contando old wife´s tales – “contos de velhas”, ou melhor, “contos da carochinha”. Assim, a estranheza britânica ao confrontar-se com jovens artistas, que em contextos urbanos realizam espetáculos de narração oral, é também causada pelo preconceito de que contar histórias é “coisa de crianças”. E podemos dizer que o mesmo sucede em qualquer outro país europeu e americano.

Paradoxalmente, apesar da estranheza e do preconceito relativo à prática, a figura do “contador de histórias” é uma referência efetiva, comprovada pela existência do termo nas mais variadas línguas. Pressupõe-se, deste modo, a necessidade de designar alguém cuja competência é justamente contar histórias. É dessa figura que fala Walter Benjamin:

Apesar do seu nome nos ser familiar, o contador de histórias na sua vivência imediata não é de todo uma força presente. Ele já se tornou algo distante de nós e está cada vez mais remoto. Apresentar alguém como Leskov como um contador de histórias não significa aproximá-lo, mas, pelo contrário, afastá-lo de nós. Visto de uma certa distância, os grandes e simples traços que definem o contador de histórias vêm-se nele, ou melhor, manifestam‑se nele como uma cabeça humana ou um corpo animal podem ser apercebidos por um observador a uma certa distância e num certo ângulo de visão. Essa distância e esse ângulo de visão são‑nos dados pela experiência que podemos ter todos os dias. Eles dizem‑nos que a arte de contar histórias está a desaparecer. Cada vez menos encontramos pessoas com a habilidade para contar uma história como deve ser. Cada vez mais há um embaraço quando o desejo de ouvir uma história é expresso. É como se algo que nos era inalienável, a mais segura das nossas qualidades, nos fosse tirada: a habilidade de partilhar experiências (Benjamin 84).

Este belo retrato de Walter Benjamin tem muito em comum com os imaginários e os discursos dos movimentos de narração oral, essencialmente no que diz respeito à nostalgia de um modelo de relação social não mediado, de uma partilha de experiências fundada na oralidade. É um texto frequentemente citado e referido, tendo servido de ponto de partida para diversas e pertinentes reflexões (Sobol 28, Patrini 33, Wilson 55, Sanfilippo 49). Curiosamente, este “contador de histórias” do artigo de Benjamin é um escritor, Nikolai Leskov, o que reflete a fragilidade do conceito, a sua abrangência, e configura o paradoxo que funda o nosso problema: a notoriedade do “contador de histórias” ideal dificulta a definição do “contador de histórias” real.

A invocação de um padrão ideal dentro dessa grande espécie que é o homo narrans, o contador de histórias – um padrão que deve a sua autoridade a indivíduos particulares e espécies que deles derivam –, é comum na crítica, bem como na escrita popular e na linguagem vernacular. Para falar de um arquétipo do contador de histórias não é necessário assumir nem uma perspetiva Jungiana nem um olhar transcendental. Para aqueles que patrulham outros territórios intelectuais, basta ser observado como uma construção mental e emocional ou uma estratégia retórica. O arquétipo do contador de histórias pode ser invocado para suportar uma grande variedade de objetivos, políticos, pessoais, artísticos, críticos ou comerciais, e pode sempre emergir com a sua natureza essencial intocada, em todo o seu potencial (Sobol 28).

Este paradigma serve, então, para valorizar muitas práticas, associando autores ou linguagens às competências desse arquétipo do “contador de histórias”. De forma mais expressiva na segunda metade do século XX, com a proliferação de formas e linguagens artísticas, as imagens do “contador de histórias” ou de “contar histórias”, especialmente em inglês (storyetller e storytelling), no contexto de uma hegemonia cultural anglo‑saxónica, invadiram o imaginário popular. Na crítica especializada, ou nos materiais publicitários, o paradigma é omnipresente e tem servido para retratar músicos como Bob Dylan (Hale), cineastas como Eric Rohmer (Caillot) ou escritores como Jim Crace, Mario Vargas Llosa, Salman Rushdie, entre outros (Dragas). Enfim, nos meios de comunicação e informação, a designação acarreta uma mitologia reconhecível e apelativa.

Por outro lado, a ubiquidade do ato de contar histórias permite a transposição desse ideal para outras linguagens artísticas, mesmo aquelas tradicionalmente estranhas à narração. Em práticas como a fotografia ou o design, algumas propostas adotam a designação de visual storytelling (Klanten, Ehmann e Schulze), o que expressa a influência de ideias como “narração” e “narratividade” na arte contemporânea (Wendt). Por fim, não se poderia deixar de mencionar o fenómeno mais evidente da “narrativa digital” (digital storytelling), que tem revelado uma aplicabilidade inquestionável, por exemplo, no trabalho em comunidade (Lambert) e em contextos pedagógicos (Ohler). Com efeito, criando mais ou menos resistências, os meios digitais se afirmaram, por excelência, canais de transmissão de histórias de vida e de um conjunto muitíssimo diversificado de narrativas e conteúdos.

Concluindo, torna-se difícil legitimar o estatuto artístico do ato de contar histórias oralmente porque, sob o paradigma do homo narrans, é algo tecnicamente incipiente, um fazer ao alcance de todos e não apenas de especialistas. Em segundo lugar, a apropriação dos termos “contar histórias” e “contador de histórias” ou das ideias de “narração” e “narrativa” por uma imensa variedade de linguagens artísticas torna difícil estabelecer os seus limites. É assim que, em português e castelhano, bem como noutras línguas, o adjetivo “oral” procura distinguir a prática performativa da multiplicidade de meios e linguagens que assumem também a função de contar histórias, como a literatura, o cinema, a música, etc.

Luis Correia

António Fontinha, narrador português (fotografia de Sofia Maul)

Da narração oral como teatro

Na demanda destes artistas por uma legitimação da narração oral e do seu enquadramento no mercado cultural, nenhuma oposição emerge tão polémica como aquela que procura distinguir as suas práticas daquelas tradicionalmente enquadradas no âmbito do teatro:

Interrogado sobre a sua arte, o narrador oral compara-a com teatro, esforçando-se por identificar as diferenças. Mas é raro encontrar um artista que se distancie o suficiente e saia da simples oposição. Esta atitude explica-se pela demanda urgente de uma identidade. Esta oposição frente ao teatro é social, determinada pela ausência de uma compreensão precisa do papel do narrador oral na atualidade e inscreve-se no percurso histórico destes novos contadores de histórias que se referem abertamente a uma falta de estatuto (Patrini 226).

Apesar da pertinência de uma legitimação social e profissional das práticas de narração oral, os discursos construídos sobre a dicotomia narração oral/teatro apresentam algumas fragilidades. Em primeiro lugar, como refere Patrini na citação acima, raramente ultrapassam a simples oposição. Em segundo lugar, falta-lhes uma consensualidade terminológica que permita avançar no debate. Um caso evidente é o que sucede com o conceito de “teatro”: ou é demasiado inclusivo, tornando-se sinónimo de performance, ou é demasiado restrito.

No primeiro sentido, como reconhece Fischer-Litche, os conceitos de “teatro” e “teatralidade” são muito abrangentes e têm servido de metáfora para quase todos os aspetos da vida em sociedade:

A metáfora do teatro tem sido cada vez mais utilizada numa variedade de áreas da cultura: por jornalistas e políticos, por diretores executivos e sindicatos, por membros do clero e cientistas. Não é apenas o termo “teatro” que tem sido utilizado metaforicamente, mas também conceitos relacionados com o palco, as máscaras, entradas em cena, papéis e encenação. Com efeito, a sua utilização tornou-se ubíqua (Fischer-Lichte 9).

Neste sentido, o conceito está intimamente ligado às ideias de “ação”, de “papéis”, ou ainda, de “drama”, contextualizado numa perspetiva do fenómeno social devedora, entre outras influências, do “dramatismo” de Erving Goffman (1959) e Kenneth Burke (1966). Por outro lado, os conceitos de “teatro” e “teatralidade” estão muito próximos dos de “performance” e “performatividade”, variando de acordo com as tradições teóricas e as línguas, como observa Fischer-Lichte (12-17). Desde esse ponto de vista, se o ato de contar historias implica uma exposição, se pressupõe fazer algo diante de um público, então, cabe sob a designação de teatro, ou seja, de performance. Como afirma Richard Schechner: “Certos eventos são performances e outros nem tanto. Há limites para o que ‘é’ performance. Mas praticamente tudo pode ser estudado ‘enquanto’ performance” (Performance Studies: An Introduction 38). Esta abrangência e falta de limites entre os conceitos de “teatro” e “performance”, se permite estabelecer a natureza performativa da narração oral, também autoriza uma assimilação simplista das práticas de narração oral que, sob a alçada do “teatro”, vêm subavaliadas as suas especificidades. Assim, se possibilita avançar para questões interessantes, minimiza aspetos pertinentes que se manifestam justamente numa reflexão sobre as supostas diferenças entre as práticas de narração oral e as ditas teatrais.

Por outro lado, noutros discursos, a ideia de “teatro” surge reduzida a paradigmas determinados por referências anacrónicas ou pouco informadas. Como refere Michael Wilson:

Se a relação entre representar e narração oral é raramente reconhecida pelos narradores orais, isto não se deve certamente a uma falta de reflexão ou de entendimento do que é a narração oral. Normalmente, isto se deve a um engano sobre o que é representar e teatro (Wilson 45).

Entre muitos outros, a narradora cubana Elvia Pérez resume de forma muito expressiva os argumentos essenciais que normalmente sustentam essa distinção entre a narração oral e aquilo a que chama “teatro”:

Desde que me iniciei no trabalho de contar histórias, em 1990, disseram-me que isto nada tinha que ver com o teatro. Depois, quando fiz a minha formação, os meus professores deram‑me mais elementos sobre o tema. Ensinaram-me que a narração oral é uma arte cénica que não é teatro, mas uma arte “em si mesma”. As diferenças eram evidentes: o narrador, ao contrário do ator, não encarna uma personagem, mas “passa por ela brevemente” no seu relato. De igual modo, a narração oral não utiliza a quarta parede do teatro, mas comunica diretamente com o público. A narração oral não utiliza elementos nem cenografia, produz‑se em qualquer lugar público e, finalmente, é oralidade (Moraes e Gomes 133).

Como na citação acima, a ideia de “teatro” veiculada nos argumentos apresentados por alguns artistas orbitam à volta da representação de personagens, da memorização de um texto, da ausência de uma relação direta com a assistência, bem como da presença de elementos cénicos como o figurino, o cenário e o desenho de luzes. Assim, apesar de identificar cambiantes pertinentes, mas difíceis de sistematizar teoricamente, as referências destes discursos, tanto no que diz respeito ao teatro como à narração oral, não têm em conta a variedade de propostas artísticas de um universo e do outro.

As estreitas relações entre a multiplicidade de formas artísticas que cabem ora sob a designação de “teatro” ora de “narração oral”, numa variedade de nomenclaturas que a diversidade geográfica, cultural e linguística tem vindo a propor, exigem uma visão abrangente que tenha em conta justamente a sua diversidade. Por um lado, quando se fala de “narração oral”, não se deve ter em mente apenas o ato de contar no seu contexto dito tradicional, ou mesmo o narrador mais próximo desse paradigma, que conta sem aparatos cénicos, que improvisa e dialoga com o público. Por outro lado, não se deveria sempre pensar, ao falar-se de “teatro”, em personagens representadas num palco, do outro lado de uma invisível “quarta parede”. Efetivamente, há muito que algumas práticas teatrais, contextualizadas numa “crise do drama” (Szondi), têm procurado afastar-se dos modelos de representação dramática, configurando um conjunto de tendências conhecidas como “teatro pós-dramático” (Lehmann). Nesse contexto, foi notória a introdução do elemento narrativo, num processo a que Szondi designou “epicização” e Jean-Pierre Sarrazac, “rapsodização”, e que constitui uma “maneira de superação ou reinvenção do modelo dramático”, conforme nota Rui Pina Coelho (19). O teatro épico de Bertolt Brecht é um exemplo seminal desta tendência em que a superação do drama não implica necessariamente o desaparecimento da “fábula”, ou seja, da função de contar uma história e da criação de um mundo ficcional, conforme, entre outros, observa Lehmann (33).

No entanto, importa notar que é na procura de uma emancipação dos mecanismos de projeção e identificação que Bertolt Brecht, a par de outros recursos cénicos, como a exibição da maquinaria teatral, introduz o elemento narrativo, central na consecução do célebre verfremdungseffekt (Brecht). Neste sentido, a responsabilidade de contar a história não é necessariamente transferida da representação dramática para a narração, conforme notam Mateusz Borowski e Malgorzata Sugiera (xviii-xix). O “estranhamento” brechtiano é, antes de mais, um mecanismo que visa promover um distanciamento crítico por parte do espectador. E esse não é necessariamente o caminho das propostas pós-dramáticas nas quais a narração oral parece enquadrar-se sem hesitação:

[...] enquanto o teatro épico altera a representação dos eventos fictícios, distanciando os espetadores no sentido de os transformar em avaliadores, especialistas e juízes políticos, as formas pós-dramáticas de narração pretendem trazer para primeiro plano o aspeto pessoal; não apenas ao demonstrar a presença do narrador, mas ao autorreferenciar este contato: a proximidade na distância e não a distância na proximidade (Lehmann 110).

Neste sentido, a proximidade com a assistência, a emergência do pessoal, ou a afirmação da identidade do performer, não são luminárias exclusivas das práticas de narração oral. Ainda assim, interessa reconhecer que, porventura, o seu modo de comunicação, que implica uma representação fundada na voz narrativa, evidencia os aspetos da relação como poucas propostas artísticas o fazem: “a relação sintática de um eu e de um vós (mesmo quando não é lexicalmente manifesta) transfere o discurso para o registo das trocas interpessoais”, conforme propõe Paul Zumthor (250-251).

Luis Correia 2

Cristina Taquelim, narradora portuguesa (fotografia com os créditos na própria imagem)

Atualização e visualização

Assim, a pedra de toque desta polémica diferença entre a narração oral e as práticas ditas teatrais não está na relação com a assistência, mas na natureza dessa relação, no modo como, através dela, a história é representada. Peter Brook, um dos encenadores mais influentes do século XX, para quem a relação com a assistência está no centro do trabalho do ator, transmite a seguinte ideia sobre a representação teatral:

Eu chamo a isto resumidamente o Teatro Sagrado, mas poderia chamá-lo o Teatro do Invisível-Feito-Visível: a noção de que o palco é o lugar onde o invisível pode aparecer está entranhado no nosso pensamento (Brook 47).

Apesar de, no contexto desta afirmação, o autor referir um tipo específico de teatro, reconhece o apelo dessa ideia do palco enquanto espaço que permite manifestar um mundo invisível. Mesmo ao abordar o seu “teatro imediato”, a ideia prevalece. Por outro lado, quando reflete sobre o trabalho do ator, ainda que questione as abordagens naturalistas de um teatro “burguês”, ou as demasiado abstratas, Brook não põe em causa a função de representar um personagem. Devido a uma aproximação à figura do contador de histórias e ao espaço central que a relação entre atores e assistência ocupa no seu método de trabalho, o encenador britânico é frequentemente referido na literatura sobre a narração oral (Patrini 229, Wilson 138, Sanfilippo 60). Não obstante, o seu “espaço vazio” continua a ser um lugar povoado de personagens que agem e reagem perante um público, construindo no presente da cena a narrativa de uma história através de uma “representação” entendida como:

a ocasião em que algo é re-presentado [sic], em que algo do passado é mostrado outra vez – algo que foi, é novamente. Porque a representação não é a imitação ou a descrição de um evento passado, a representação nega o tempo. Ela elimina a diferença entre ontem e hoje (Brook 155).

Esta parece ser uma ideia de teatro que continua a constituir um paradigma, apesar do questionamento do seu caráter de “imitação”. Porque, se este teatro abdica da função de imitar a vida, não renuncia a construção de uma realidade no espaço e no tempo da performance. Richard Schechner apresenta uma ideia semelhante:

O modo especial de lidar com a experiência e saltar os hiatos entre o passado e o presente, o individual e o coletivo, o interno e o externo, eu chamo “atualizar” [...] A atualização é o ato de fazer presente um tempo ou um evento passado (Schechner, Performance Theory 32‑37).

Assim, “atualizar” a história no presente da performance, tanto a nível temporal como espacial, parece continuar a ser o campo de ação da maior parte das práticas performativas. Mesmo quando o teatro pós‑dramático parece libertar‑se do texto e da representação de uma história para investir na presença e na corporalidade dos performers, mesmo quando aborda a assistência diretamente, ou quando procura a capacidade enunciadora do ator recorrendo às eficácias da narração, ainda assim continua a investir da visibilidade, na criação de um mundo possível no aqui e no agora da cena, na “atualização”.

Agora, no sentido de compreender a poética dos narradores orais em oposição à “atualização” de grande parte das propostas ditas teatrais, pode ser útil voltar à distinção de Chatman entre as histórias “não-narradas” e “narradas”, evocando o debate clássico entre os modos de representação:

Apresentações diretas presumem um tipo de perceção por parte da audiência. A narração mediada, por outro lado, presume uma comunicação mais ou menos expressa entre narrador e audiência. Esta é essencialmente a distinção de Platão entre mimesis e digesis, em termos modernos, entre mostrar e contar [narrar]. Quando há narração, tem de haver um narrador, uma voz narrativa (Chatman 146).

Os conceitos de mimesis e diegesis não são consensuais na história da teoria da narrativa, apresentando, desde o início, variantes entre as aceções de Platão e as de Aristóteles, bem como no seu desenvolvimento mais recente (Genette, Stanzel, Chatman). No que interessa à presente reflexão, e como propõe Chatman, o conceito de mimesis, sinónimo de “mostrar”, refere uma representação direta dos eventos, sem recurso à narração, enquanto diegesis, sinónimo de “contar”, indica uma representação manifesta verbalmente por uma voz narrativa.

No entanto, é preciso notar que entre a mimesis e a diegesis existe uma infinita possibilidade de gradação. É neste sentido que Chatman propõe a figura de um narrador covert, que se posiciona entre os polos opostos da mimesis, em que a narrativa é apresentada por um narrador overt, e da diegesis, o das histórias “não-narradas”, em que o leitor ou o espetador tem a impressão de estar a testemunhar os eventos da história (Chatman 197).

Assim, mimesis e a diegesis são polos contrários de um contínuo. De um lado está a ausência de um narrador, uma apresentação direta dos existentes e dos eventos da história que permite a “atualização” do mundo possível no aqui e no agora do evento performativo. No absoluto ideal da mimesis, o mundo possível e o evento performativo coincidem: o discurso é a história, ou, dito de outro modo, a história é o que acontece na performance. No extremo oposto desse contínuo está o narrador, performer presente no aqui e no agora, cujo discurso representa verbalmente os existentes e eventos da história, permitindo a cada participante uma “visualização” mental do mundo representado. No absoluto ideal diegesis, esse mundo possível nunca se confunde com o tempo e o espaço da performance, o “aqui” e o “agora” dos seus participantes. Nos termos de Richard Bauman, a performance narrativa tem uma dupla dimensão explícita: os eventos narrados, que correspondem à história, e o evento narrativo, que é o discurso (Bauman 112). Esta dupla dimensão da performance narrativa corresponde a um eixo dentro-fora: a história narrada é experienciada internamente através da “visualização”, enquanto a narração tem lugar no espaço e no tempo externo, e coletivo, da performance.

A gestão entre estes dois polos é contratualizada continuamente durante a performance, operada pelo narrador através da manipulação do tempo, da perspetiva e do modo, quase sempre associada a um nível metanarrativo. O performer pode assumir ora o papel de narrador, ora o de personagem da história representada, oscilando ao longo do contínuo entre os opostos da mimesis e da diegesis, entre “atualização” e “visualização”. O emprego do presente histórico, uma pequena modulação de voz ou um breve gesto deítico são ainda exemplos de elementos capazes de mover bruscamente o enquadramento da performance. No entanto, essa oscilação não é gerida apenas pelo performer, mas por todos os outros elementos visuais e sonoros. Entre outros exemplos, um narrador que atua diante de uma tela gigante em que está projetado o cartaz de um festival “atualiza” o espaço da história na medida dos limites impostos pela presença de um elemento paratextual tão expressivo. Em todos os casos, os elementos performativos externos ao performer não criam apenas um “ambiente”, mas constituem um discurso que contribui de forma expressiva na oscilação entre “atualização” e “visualização”.

Uma questão de distância

A poética dos narradores orais tende, regra geral, para uma representação que procura justamente promover a “visualização”, evidenciando a distância entre o evento narrativo, o “agora” e o “aqui” da performance, e os eventos narrados, o “então” e o “além” da história. Esta tendência está expressa, desde logo, no aspeto lendário, mítico e tradicionalista dos repertórios. Grande parte destes relatos aconteceram “há muito tempo” e “num lugar muito distante”. O narrador oral inglês Ben Haggarty, ao iniciar a narração da sua versão do conto “O Morto Agradecido” (ATU 505) no Maratón de los Cuentos em Guadalajara, Espanha, expressa de forma evidente este posicionamento: “Como começa uma história… em inglês? Era uma vez! Têm a certeza? Não eram duas vezes? Não eram três vezes? Só uma, não é? E nunca mais!” (Haggarty 01:45‑02:05).[2]

Através desta interação introdutória com a assistência, Haggarty estabelece, logo de início, um contrato narrativo em que se garante a distinção entre o discurso, que é o presente da performance, e a história contada. A questão, no entanto, não é potenciar uma atitude crítica e um desapego emocional, mas, pelo contrário, estabelecer um ambiente evocativo e nostálgico.

Por outro lado, a distância em relação ao representado é proporcional à proximidade relativa à assistência: quanto mais presente o papel mediador do narrador, mais expressivo é o nível metanarrativo, e mais próximos estão o performer e os seus interlocutores. Esta poética da “relação” manifesta-se numa rejeição quase unânime de um narrador ficcional. Como testemunha a artista norueguesa Heidi Dahlsveen:

Eu não quero representar uma personagem quando estou a narrar. É a minha própria voz. É… e a autenticidade está no encontro entre tu e eu. Por isso, se eu ponho um figurino, sinto que estou a representar e não me sinto confortável (Dahlsveen 28:25-29:00).

No mesmo sentido, Nicolás Buenaventura relata uma história pessoal em que é central a questão do narrador/personagem. Conta o artista que quando o seu pai, Henrique Buenaventura, teórico, dramaturgo e encenador colombiano, começou a seguir o seu trabalho como narrador, tomou a iniciativa de escrever-lhe um texto baseado em relatos míticos das culturas indígenas das Antilhas, recompilados por um abade que acompanhava Cristóvão Colombo. Sobre este texto, Nicolás Buenaventura observa que:

todo o texto de Henrique estava na primeira pessoa do abade. Era o abade que regressava e contava as histórias [...] Para mim era um gesto maravilhoso, ele escrever-me um texto completo... Ainda por cima, muito bonito, extraordinário, mas eu não podia representar o abade [...] Não estava o outro ponto de vista, aquele que conta a história do abade. E então quando eu lhe disse isso ele entendeu [...] Ele compreendeu esse problema, que eu não ia sair representando esse abade no cenário [...] Ele entendeu muito rapidamente, ele entendeu muito bem (Buenaventura 09:00-10:20).

Esta resistência dos narradores orais à representação mimética está explícita mesmo quando assumem discursos diretos. Nesses casos, um desinvestimento na mimetização prosódica e quinésica, ou, pelo contrário, uma acentuação, permite um distanciamento e, naturalmente, uma metanarração. Este distanciamento é realizado, desde logo, também a nível textual, pela anexação do discurso direto ao fluxo do discurso indireto através de “marcadores”: orações conetivas que identificam a personagem que fala e a natureza do seu enunciado (Chatman 198-201). Ao anexar a maior parte dos enunciados das personagens através de orações como “ele disse” ou “ele perguntou”, o narrador reafirma a sua presença mediadora e o seu distanciamento em relação ao representado.

Finalmente, importa reconhecer que estas propostas poéticas que privilegiam a “visualização” em detrimento da “atualização” colocam desafios teóricos que não se esgotam numa breve reflexão como esta. Nas palavras de Rui Pina Coelho:

Como se analisa um espectáculo que acontece, essencialmente, na mente do público? Com que critérios devemos nós analisar uma mise en oralité, treinados que estamos a ver antes de ouvir? Qual é o papel do corpo do intérprete nesta mise en bouche? Enfim, qual é a relação entre a figura do contador de histórias e a do actor? (Coelho 18)

As questões levantadas pelo teórico e crítico de teatro expressam o problema central desta polémica e permitem reconhecer que temos vindo a olhar para o teatro, ou para a performance, enquanto espaço de visibilidade de um mundo possível, incapazes, portanto, de observar uma representação que procura “visualizar” em vez de “atualizar”. Assim, esta reflexão pretende, acima de tudo, chamar a atenção para a particularidade dos recursos poéticos dos narradores orais, contribuindo para uma teoria capaz de pensar obras que, com efeito, têm circulado marginalmente, fora dos circuitos institucionalizados das artes performativas, das suas agendas, dos seus programas de subvenção, dos seus estudos. Mas é talvez importante salientar que não intenta promover uma taxonomia, propondo paradigmas para a “narração oral” ou para o “teatro”. Ao reconhecer tendências dissemelhantes, identifica que o cerne da questão está num contínuo de opções discursivas entre “atualização” e “visualização”, entre “mostrar” e “contar”, que não são exclusivas, uma do “teatro” e outra da “narração oral”, mas comuns a toda representação. Porque, com efeito, uma taxonomia das artes performativas que definisse um espaço circunscrito para a “narração oral”, mesmo que legitimada pela demanda de uma classe profissional que precisa ver o seu ofício reconhecido, apresentaria um problema fundamental: o verbo “definir” aproxima-se demasiado do verbo “definhar”, por afinidade etimológica. Seria mais fácil estabelecer os limites, os fins deste objeto, não estivessem os mesmos em constantes mutações, não fosse próprio das práticas artísticas esta diluição de fronteiras, esta diversidade de linguagens, este contínuo questionamento de modelos. Enfim, trata­‑se aqui da dificuldade de retratar algo extremamente vivo e dinâmico, demasiado recente, em contextos demasiado distintos, envolvendo agentes demasiado diversos. Partir daí seria correr o risco de uma representação estática do fenómeno, como se de algo morto se tratasse: “definir” e “definhar” tornar-se-iam, assim, indesejavelmente semelhantes.

 

Referências bibliográficas      

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Referências ao arquivo pessoal

Buenaventura, Nicolás. Entrevista pessoal. 29 de setembro de 2012.

Dahlsveen, Heidi. Entrevista pessoal. 29 de novembro de 2012.

Haggarty, Ben. Vídeo pessoal. 15 de junho de 2013.

 


[1] As citações são traduzidas livremente pelo autor, respeitando, sempre que presentes, os elementos destacados.

[2] Nas referências a gravações em áudio e em vídeo realizadas e arquivadas pelo próprio investigador, apresenta-se o intervalo de tempo do conteúdo citado.