Desforma - Ana Wuo

October 29, 2018

 


"Desforma: iniciação ao clown, facetas cômicas variadas e ridentes como noções preambulares ao trabalho de ator"
 

  

ANA ELVIRA WUO(*)

Professora na UFU-Universidade Federal de Uberlândia 

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(*Ana Elvira Wuo é atriz, palhaça, professora adjunta do Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlândia. Pesquisadora em técnicas de ator -LUME - UNICAMP (1994-1998), possui mestrado em Estudos do Lazer em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (1999), doutorado em Pedagogia do Movimento-Corporeidade em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (2005) e doutorado em Artes da Cena-Instituto de Artes da UNICAMP (2016). Pós-doutorado em Linguística no IEL - Instituto de Estudos da Linguagem - UNICAMP (2008- 2011). Na área de teatro, atua principalmente nos seguintes temas: clown, mímesis corpórea, espetáculo teatral, técnica de treinamento, processo criativo e elaboração de repertório do ator, com ênfase na formação/atuação de palhaços no contexto hospitalar. 

 

Resumo: O presente texto tece apontamentos da iniciação clownesca por meio de tramas experimentais aviadas em momentos distintos, as quais culminaram no processo ritual da travessia do ator ao território da comicidade. Atravessamentos intrínsecos na teorização Bergson, Burnier, Lecoq e Propp alinhavam pontos subjetivos, entrecruzando teoria e práxis, estabelecendo conexões simbólicas e transgressoras.  O conceito desforma elucida facetas cômicas variadas e ridentes com   atribuições  de noções preambulares clownescas ao trabalho de ator. 

Palavras-chave: Comicidade, Ator, Iniciação, Rito de passagem.

 

International School of Mime and Theather de Lecoq desenvolveu, a partir da década de 1960, um trabalho com técnicas relacionadas ao movimento do corpo no espaço. Lecoq chamou de Personal Journey (22) o processo educacional que a escola oferecia em dois anos de formação: Melodrama, Commedia dell’arte, a grande paixão de Lecoq, BouffonsTragedye, no final da trajetória, vem o desenvolvimento do clown. Lecoq descreveu que o trabalho da escola termina em risos, com o módulo da máscara dos clowns e as variedades cômicas: burlescas, excêntricas, todos os tipos de absurdos (143). Com o tempo este território se abriu mais e mais, se tornando tão importante e tão extensivo quanto da máscara neutra. Juntas, elas emolduram o ensinamento oferecido pela escola. No início essa parte do trabalho durava 2 ou 3 dias, agora ela se estende por várias semanas, já que a fascinação dos alunos nessa área levou-o a realizar um aprofundamento minucioso.

As primeiras aparições dos clowns em escolas de teatro se pronunciam quando Lecoq investigava a relação do clown com o palhaço do circo. A sua principal descoberta veio com a elaboração de uma simples pergunta: “Como o clown nos faz rir?”. Lecoq, um dia, numa de suas aulas, sugeriu aos alunos que ficassem em círculo, lembrando o picadeiro do circo, depois pediu aos alunos que o fizesse rir. Um após o outro, lembrava Lecoq “caíram tombos, fizeram palhaçada, cada um mais extravagante que o outro, mas tudo em vão. O resultado foi uma catástrofe” (143), e exemplifica o autor: “nossas gargantas secaram, nossos estômagos estavam tensos, estava se tornando trágico. Quando eles perceberam que fracasso tinha sido, pararam de improvisar e voltaram aos seus acentos, sentindo-se frustrados, confusos e embaraçados”.

Foi naquele momento, segundo Lecoq, que os alunos perceberam as suas “fraquezas” e todos caíram na gargalhada. Não foi por causa dos personagens que eles haviam tentado mostrar, mas sim pela própria pessoa despida para que todos a vissem, descobrindo, assim, a solução.

Como ensinar uma pessoa a provocar o riso no público

Esse “como”, elaborado por Lecoq na sua escola na França, também foi indagado por mim e sempre acompanhou a minha trajetória de atriz ao apreciar desde a década de noventa os espetáculos de clown elaborados pelo LUME-UNICAMP. Em outros momentos, ao participar como corpo de apoio aos retiros e assessorias promovidas durante a minha atuação como atriz pesquisadora do núcleo. Assim, rememorando os ensinamentos do mestre Burnier que detalhadamente explicava-nos que existia uma diferença do “como” e de “o que” em relação a forma de representação do clown europeu e o americano. (205) “Como” o clown vai fazer é uma preocupação da tendência da linha europeia de trabalhar. Diferente do “o quê”, linha que os americanos desenvolvem, que “dão mais valor à gag, ao número, à ideia; para eles, “o que” o clown vai fazer tem mais peso”. Esse “como” pode ser o divisor de águas relacionado à diferença entre a transmissão do ensinamento da técnica clownesca, resultando em diferentes estilos e escolas de representação de clowns e palhaços, tanto no circo como no teatro. 

Então, provocar o riso em alguém e como podemos fazer esse alguém rir é muito singular e plural ao mesmo tempo, pois o que é engraçado para um, não o é para outros. O clown é aquele que, assumindo o seu jeito particular de fazer as coisas, “o como”, pode fazer somente uma pessoa, um grupo ou a plateia toda cair na gargalhada. Depende da forma, qualidade e intensidade da bobagem que o clown executa e da pessoa ou plateia que o vê. Para tentar explicar esse ponto, recorrer a Propp pode nos ajudar na compreensão do fenômeno, quando o autor declara existir uma dificuldade em analisar o fato, ou a causa do riso, pois o nexo entre objeto cômico e a pessoa que ri não é obrigatório nem natural. Lá, onde um ri, outro não ri. O surgimento do riso constitui um processo em que deve estudar todas as condições e causas que o provocam. Propp investiga os tipos de riso classificando-os de acordo com o contexto, mas não como um fenômeno universal. Propp respeita a lei das diferenças em relação à manifestação do riso, por isso não concorda com Bergson na definição de que “o riso ocorre quase com a precisão de uma lei da natureza: ele acontece sempre que há uma causa para isso,”(9) então o fenômeno ridente causado no ser que ri está aliado a diferenciação de estímulos. 

Teoricamente, em consonância com o conceito Bergsoniano, a proposta em práxis da escola de Jacques Lecoq dá ênfase às diferenças. Isto é, cada aluno é um aluno diferente do outro, como exemplo tem-se a experiência que um aluno que se matricula na escola traz de outro país, esta é somada à experiência pedagógica da escola. Todos trocam princípios culturais com o intuito de agregar valores ao caráter de uma filosofia do fluxo do movimento. Todos que entram na escola sairão com uma base comum, a base de que o riso é universal. Isso também estava implícito na maneira de trabalhar o clown e em como ele faz o público rir. Para Lecoq, o que faz um inglês rir não necessariamente faz rir um italiano ou japonês, mas os clowns originados a partir de uma dimensão cômica universal, de forma mais abrangente, estarão aptos a fazer o mundo todo rir. (151)

Alguns elementos sobre a questão do riso e seu caráter universal são desenvolvidos sob o ponto de vista técnico. Mas retomando a noção investigativa de Propp descrita acima, nota-se que a mesma pode contribuir no sentido de desvelar o fenômeno ridente em diferenciadas plateias com estudo de proposição de contexto: “a manifestação do riso pode residir em condições de ordem histórica, social, nacional e pessoal. Cada época e cada povo possui seu próprio e específico sentido de humor e de cômico que, às vezes, é incompreensível e inacessível em outras épocas” (14).[1]

Para tanto, existe então uma confluência entre os autores citados que relacionada ao fenômeno ridente, pronunciam os pontos não fixos e certa mobilidade que o riso desperta no espectador, independente de contexto ou situação. O que nos interessa para esse estudo, no que concerne a iniciação do ator à comicidade clownesca, são os princípios de mobilidade e não fixidez adensados em meio a expressividade corpóreo verbal, os quais pronunciam indícios de uma revelação gradual compreensiva, a qual apreendida pelo neófito desenvolve-se como um tipo de linguagem permeada de características cômicas flexíveis. Então, para fazer rir o espectador, faz-se necessário desenvolver esse tipo de linguagem.

O convite

Ao ser convidada para iniciar clowns,  durante a minha prática com os aprendizes em sala de trabalho, a fala dos mestres e as teorias estudadas não bastavam para trazer à tona o clown de cada um durante a oferta de um curso. Por essa mesma razão, mediante a complexidade do assunto, retomei à mesma pergunta: Como iniciar o clown no estudante? Só que em outra dimensão e intenção, comparativamente àquele que vai ensinar. Como posso ensinar alguém a provocar o riso no público? Num primeiro momento, retornei às minhas origens: à iniciação, à técnica e ao método de ensino dos meus iniciadores e ao modo de compreender o fenômeno, tanto sendo clown como iniciadora de clowns. 

Tendo um cuidado redobrado para não perder o fio condutor da comicidade de cada pessoa, percebi que o que aprendi sobre o clown nos cursos de iniciação, havia detalhes expressados pelos participantes que careciam de muita atenção “uma pequena ação, uma ação surpresa, um lapso corporal, por exemplo, a vergonha que uma pessoa sente ao estar exposta ao público”, que poderiam ser revelados para a plateia e poderiam mobilizar a ação ridente no espectador. 

Por exemplo, como explicava Burnier em suas aulas, tem que se ater aos detalhes, pois quando o aprendiz clownesco torna-se imobilizado em frente ao espetador, sem saber o que fazer, imediatamente, surge um balancinho do corpo, um retorcer das mãos, de repente um sorrisinho meio sem graça, uma risada meio nervosa, um olhar, meio de rabo de olho, espreitando o público e um olhar sem querer encarar, tentando disfarçar algo e tentando esconder alguns detalhes ou partes do corpo: um nariz muito desproporcionalmente grande ou pequeno, orelha ou pescoço desproporcionais. Ou mesmo sinais corpóreos que poderiam servir como pistas para revelar o clown da pessoa e para experimentar a reação do espectador quando observa aquela parte do corpo.

Tais sinais não são totalmente muito evidentes no corpo, mas se evidenciam nas atitudes, no caráter e na personalidade. Tanto a braveza, a parvoíce, a timidez, a extroversão e a distração, como a presença da pessoa em seu estado natural: sem imitar ninguém, mas sendo ela mesma, do jeitinho que ela é, são pontos chave, que devem ser percebidos, investigado pelo iniciador, aliado a questão persistente: como essa pessoa se torna engraçada? Em quais momentos? A observação detalhada das ações e reações do que é engraçado em uma pessoa, produz pistas, iscas potencializadoras, para atrair e revelar o fenômeno clownesco ao neófito. Por isso, os pequenos detalhes são os mais observáveis quando o olhar do iniciador também é receptivo, perceptivo e móvel.

Na condução de um curso de clown, todos os momentos são preciosos, a atenção está voltada para descobertas até mesmo durante os intervalos, pois deparar-se com a faceta cômica de uma pessoa é uma tarefa árdua e os momentos mais inusitados são os mais reveladores. Envolver o aprendiz com elementos criativos pelos quais vai mostrar, expressar e revelar ao mestre de iniciação o caminho secreto onde guarda ou esconde seu lado frágil e suas bobagens é uma tarefa de detetive. Elementar, meu caro Watson, temos que brincar simbolicamente de esconde-esconde, pega-pega, está frio está quente a procura de pistas do que seja comicidade pessoal para encontrar o clown em um curto período de tempo em meio ao processo ritual de iniciação de uma pessoa.

Percepções pessoais da iniciadora

No momento da iniciação dos clowns, em que estava sozinha em sala de trabalho (evocando o que aprendi com os mestres, mas sem presença dos mesmos por perto), refleti muitas vezes como é que iria enxergar de forma plural a singularidade de cada pessoa sendo “ela mesma” e quando, em meu primeiro curso, com 25 pessoas participantes – entre elas, atores e educadores, ansiosos pela descoberta do clown – percebi que as “diferenças” e as singularidades seriam a viga mestra para a construção de um grande desafio. Cada pessoa tem uma singularidade clownesca a partir de uma perspectiva pluralesca, e a partir dessa premissa, retornei para meus passos de iniciante, tentei redescobrir, em mim mesma, a estratégia que o aprendiz teria que prover para, num primeiro momento, estabelecer o contato compreensivo com o próprio clown. 

Essa estratégia foi ponderada com base em estudos investigativos na pluralidade de formas diversas aliadas às expressividades palhacescas, conforme um ponto de vista inicial. Desde o princípio de um curso preparatório de clown foi de extrema importância perceber que cada aprendiz possuía uma singularidade específica que seria desdobrada na interlocução e na demonstração do clownesco em relação a sua exposição pública. O iniciador captura a essência, mas o desdobramento da comicidade da forma clownesca do aprendiz somente se revela de forma móvel na presença do riso do espectador, este ajuda a compreender formulações criadoras da expressão cômica.

Rito preambular

Lecoq realiza a iniciação a qualidade clownesca a ser identificada no ator, por meio de conteúdo aprendido em sua escola, após dois anos em que os alunos cumprem duas jornadas, a primeira, no primeiro ano investiga diferentes possibilidades de trabalho com a máscara neutra. Já na segunda jornada, no segundo ano, apresenta estilos diferenciados como melodrama, commedia dell´arte, bufão, tragédia até chegar a máscara clownesca.  A base preparatória dessa última, tem como característica principal um aprimoramento preambular em outros tipos de máscaras. 

Por outro lado, a minha proposição investigativa, utilizando somente a máscara vermelha do clown, sem utilizar outras máscaras como fez Lecoq, propõe investidura na variação pessoal, portanto segue paralela à linha de Burnier: iniciar o clown diretamente, procurando criar os conteúdos qualitativos durante o processo de iniciação em curso. Porém, constato também uma sutil diferença variativa entre a minha proposta de iniciação em relação aos dois autores.

A minha proposta sugere que na fase anterior ao clown, por meio de jogos de exposição, o aprendiz revele ao iniciador como é a sua própria lógica de sentir e agir para determinadas circunstâncias dadas, a partir de estimulações da construção do clownesco iniciando pela pisada no chão e a repercussão no corpo de formas que dilatadas, tornam-se engraçadas. Durante os exercícios preliminares, sugeridos num estudo já finalizado e discutido no capítulo “Aprendiz de clown, o processo”da  tese de doutorado “Clown: desforma, rito de iniciação e passagem”, explano sobre ensinar o participante a ser clown e quais são suas qualidades cômicas (Wuo). 

O que nos interessa discutir neste artigo relaciona-se mais ao olhar atento e perceptivo do iniciador como uma forma de investigação propositiva que conduz o aprendiz a constatação de ponto comum, em que ele mesmo, o aprendiz, perceberá se representa um tipo ou personagem cômico. Tal representatividade de um personagem ou tipo cômico, algumas vezes, não é percebido pelo iniciado. Para tanto, a não percepção, subtrai o entendimento e a compreensão do clown dentro de si, por conta de uma representação alheia a sua persona clownesca. No entanto, o olhar para si mesmo e o despertar para o conhecimento de qualidades pessoais cômicas, segundo esse ponto de vista, é uma base muito eficiente para que o iniciado se aproprie da pessoalidade clownesca. A base comum de pessoalidade do clown, é definida na prática como uma ação pitoresca ou movimento comicizado (neologismo meu) inicial que pode, por exemplo, levar o neófito a perceber o seu jeito engraçado de andar ou alguns gestos que são seus e que, dilatados pela técnica, tornam-se extremamente engraçados, os quais produziriam o efeito ridente naquele que o observa. Tais pontos podem revelar indícios da comicidade corporal e que se observados cautelosamente pelo mestre iniciador, serão investigados, cindidos, fixados, adensando junturas compreensivas as quais serão reconhecidos e memorizados pelo aprendizcomo gesto ou conjunto de gestos potencializadores do riso.

Do ponto de vista técnico, vai permitir isolar essa ação cômica como uma amostra e analisá-la, como num laboratório, por meio de um microscópio, focando na atuação do aprendiz com minúcia observacional, indo do mínimo detalhe à dilatação do seu corpo, colocando uma lente de aumento na ação ou num conjunto de ações que o aprendiz poderá compreender como únicas e pessoais, as quais potencializam o cômico pessoal se forem reconhecidas tais como. O outro ponto de referência para observação é o que está voltado para o público, aquele que observa o aprendiz de clown em outra dimensão. O iniciador é um representante do público, portanto, exigente tanto quanto uma pessoa da plateia, mas que está especificamente ligado e atento a detalhes técnicos

Percebe-se então que o trabalho preparatório das investigações preliminares, propiciam bases fundamentais para que, no final do curso, aconteça o que se denomina aprendizagem do clownesco. As bases são previamente formuladas e direcionadas pelo iniciador e devem contar com o conhecimento da exploração do elemento cômico em si, o qual propõe diferentes formas de se chegar a expressão do cômico, a fim de que todas as pessoas participantes do processo, nos momentos mais inesperados, possam revelar inusitadamente a própria comicidade – que o iniciador irá pontuar com uma observação verbalizada ao aprendiz para que este compreenda quais formas expressivas identificadas no corpo, nas ações, são pessoalmente engraçadas. 

Na proposta aqui discutida, vários exercícios e jogos são acionadoscomo um conjunto interlocutor para o iniciado perceber-se em situações e contextos diferenciados. São nas atividades em conjunto que o participante nem percebe que está sendo observado, quando acha-se protegido pelo grupo, este é o momento que mais se expõe, sem se dar conta o aprendiz consegue soltar-se, descontrair-se e assim produzir as pistas, os lapsos cômicos identificados pelo iniciador.

A percepção dos pequenos “lapsos” de comicidade na expressão de uma pessoa é algo que só um olhar treinado pode absorver, porque não se pode pronunciar ao aluno a noção ou o sentido cômico que achamos que ele tem que ter, jamais podemos concretizar ou cristalizar um modelo cômico como apropriado, perfeito, correto, concreto, acertado e finalizado. Por lapsos entendem-se gestos repentinos que surpreendem o espetador, um jeito de olhar, de sorrir, um balanço do quadril, um estalar de dedo, qualidades estas que demonstrem inusitadamente uma característica engraçada na forma de agir do aprendiz. 

Como orientadora de um processo, necessitei “desformar” meu juízo de valor ao que é engraçado, cômico de um modo geral, elaborando um despretensioso conhecimento intuitivo para observar cada aprendiz, desconstruindo a lógica coletiva social e conhecer a lógica particular, esta geradora da expressão individual. Além de tudo, a comicidade corpórea, à qual nos atemos nesta pesquisa, tendo suas particularidades, também não se atém a estudos isolados das teorias como ponto de partida, mas praticando as teorias, processando e observando pontos isolados, pois, como já citei, num curso existem vários tipos de pessoas: aquelas que chegam expostas, outras totalmente herméticas, algumas equivocadas com a forma corporal do clown ou tentando ser uma réplica de algum clown conhecido e formado. Para tanto, se as teorias não dão conta de revelar caminhos, precisamos desenvolvê-los na prática como forma de compreender os conceitos. 

Uma das regras determinadas no curso é, em primeiro plano, não julgar, não indicar caminhos ao iniciado, mas propor práticas com variadas facetas, para que o aprendiz vá subtraindo, a seu tempo, as formas mecanizadas e convencionais de seu corpo, aproximando-o da essência de busca das ações primárias, do corpo vazio, de uma “desformação”.O objetivo é tentar desenvolver o ponto de esvaziamento, a não forma, para não cair na imitação de outros palhaços já existentes, os quais não devem ser utilizados como referência. A palavra desforma é uma palavra de trabalho, a qual produz no aprendiz um efeito de desmodelagem, em que o corpo se desvencilha de formas prontas, e atua numa zona ou estado de esvaziamento das convenções, na qual acontece o corpar de ações habituais, na observação do fenômeno da desforma, o corpo do neófito perde o centro de gravidade, esparrama-se no nível baixo, onde uma ação interior move o corpo, sem forma, desforma, por meio da condução vocal do iniciador, que estimula a criação de falas nunca antes faladas, sons não conhecidos, brincadeiras nunca antes brincadas, danças jamais dançadas, atuação corporal nunca antes prevista (Wuo).

Desformar o conhecimento em ação elabora a questão disparadora: Como seria agir num mundo sem formas? Segundo alguns relatos escritos pelos aprendizes, após os experimentos, a palavra desforma impulsiona desmodelagem corporal, em que desformar suprime modelos prontos e altera a compreensão da lógica cotidiana linear. A práxis desforma, propicia ao iniciado a aproximação com a noção de princípio mobilizador e flexível e a percepção de outras lógicas de conhecimento, aliando lógica palhacesca, da comicidade e do risível, conduzindo a experimentação dos estados de esvaziamento, do escape de formas prontamente elaboras. Instaura-se, por meio do cômico, a inventividade deste, distanciando-se dos esquemas do pensamento intelectivo de resoluções de problemas. Contrariamente a lógica de raciocínio para solucionar e acertar, o conceito de desforma propõe aventuras por caminhos não convencionais onde o erro, o fracasso e a ausência de inteligência são princípios norteadores para mobilizar a percepção de si, sem forma, desconhecimento, esvaziamento como fruto inverso e avesso da construção da essência e da noção preambular da comicidade.

Reflexões prospectivas

O clown, além de você mesmo, é uma maneira de ser você pelo lado brincalhão, avesso, contrário, atrapalhado, ridículo e patético. Colocando em destaque que uma pessoa tem muitas formas de ser, o clown é uma delas, mas num primeiro instante a desforma é um modo sem forma de instigar a descoberta pessoal no aprendiz. A compreensão e aceitação desse aspecto “desformador” é o princípio gerador de processo criador da busca pelo clown pessoal (Wuo).

Lecoq ensinou ao aluno como ir ao “encontro de seu próprio clown”, mas compreendi a necessidade de criar estratégias que caminhassem ao lado do encontro, produzindo um momento de busca, compreendi a necessidade de inverter o processo, em que o aprendiz não vai mais em busca do clown, mas o clown vai em busca da sua própria pessoa, proporcionando o encontro. O clown, no entanto, não é um meio para nada, mas sempre um fim em si mesmo. Ele não nos foi dado como um meio para algo além dele, mas sim para ser plenamente um divertimento artístico para consigo mesmo. Assim, o lado sério da pessoa pode ficar aguardando do lado de fora da porta da sala de trabalho. No entanto, o ensinamento sem pressupostos do que seja um clown pelo mestre, possibilita ao aprendiz compreender o processo como um meio flexível em relação a concretude da etapa da lógica exploratória reconhecida como clown. A primeira etapa da aprendizagem é descobrir um estado cômico no corpo, apenas uma essência não acabada, mas aberta a criação que o estado clownesco elucida. Após   essa etapa, o aprendiz estará sensibilizado para desenvolvê-la como técnica clownesca, mas esta é uma discussão que ficará para outro momento.

Considerações múltiplas

A condução do experimento iniciação ao clown designou investigação cautelosa para o desenvolvimento de um olhar sensível, móvel e afinado para o entendimento pessoal de mestre de iniciação ao que é clown-palhaço (entendo as duas palavras como essências cômicas, sem valorar mais uma em detrimento outra) no neófito. A trajetória, as descobertas no território clownesco realizadas pelo aprendiz são progressivas e criativas, já que o processo criativo do clown pessoal se elabora no aprendiz, por si só, e é revelado por ele, já que “demonstra” quando o fenômeno acontece com exatidão no participante. Desse modo o processo torna-se a elucidário pelo mestre iniciador, não como um fim, não como uma porta de saída, mas como porta de entrada, de passagem para interlocução, compreensão, apreensão e expressão criadora no variado território cômico, pronunciando a noção do rito preambular. Noção precedente, caracterizada de minucioso envoltório experimental ritualístico móvel, que elencado ao princípio ridente, indicou a elaboração de fundamentos básicos por meio da tríade dos termos essenciais: transgredir, mobilizar e flexibilizar. A noção primordial do clownesco-palhacesco indica que tais essências possuem características elencadas sob a perspectiva variável, múltipla e móvel em que tais atributos qualitativos são relevantes na desenvoltura das múltiplas facetas do trabalho de ator.

 

Referências:

Bergson, Henry. Ensaio sobre a significação do cômico.2.ed. Rio de Janeiro. Zahar, 1983.

Burnier, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica à representação.Campinas: Editora da UNICAMP, 2001.

Lecoq, Jacques. The moving body: The teaching creative theatre. Le corps Poétique. Trad.David.Bradby. New York: Routledge, 2001.

Propp, Vladimir. Comicidade e Riso. Trad. Autora Fornoni Bernardini e Homero. Freitas de Andrade. São Paulo: Ática, 1992. 

Wuo, Ana Elvira. ClownDesforma, Rito de Iniciação e passagem. Tese de doutorado em Artes da Cena, UNICAMP, Campinas, 2016.

 

NOTAS:


[1] Propp desenvolveu um estudo sobre comicidade e riso com o objetivo de observar esse conteúdo na análise de material literário e folclórico, sem atribuir uma atenção especial à categoria do cômico enquanto categoria filosófica ou estética.

 

La escena expandida ~ ISBN: 978-1-7320472-2-8 

Ediciones KARPACal State-Los Ángeles y REVISTA RASCUNHOS/GEAC, Universidad Federal de Uberlandia.

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